Não
é tarefa fácil - diria mesmo impossível - escrever uma história do canto tão
sucinta como esta. É quase o mesmo que escrever a história da própria música,
pois, sendo o único instrumento que expressa uma relação direta entre mente e
corpo, o canto está presente em todos os períodos da história do homem. Deste
modo, decidi escrever apenas sobre alguns aspectos de absoluta relevância para
a compreensão do processo evolutivo da música cantada.
Primeiramente,
é muito importante que se tenha consciência do enorme impacto que causaram ao
século 20 a invenção e o desenvolvimento dos meios de gravação e de difusão do
som: o fonógrafo, o gramofone, o microfone, o rádio, o cinema falado, a fita
magnética, o vinil, o CD e a Internet - o que perderíamos chamar de "a
indústria da repetição". Enquanto hoje há muitos "clones" de
cantores (e de outros instrumentistas), no passado devia haver uma diversidade
muito maior. Dá o que pensar se meditarmos um pouco sobre a relação que as
pessoas teriam com a música no tempo de Chopin (1810-1849), por exemplo,
quando a mesma música era ouvida apenas uma ou duas vezes durante a vida toda.
Sem referências para comparações, os padrões para a apreciação numa primeira
audição obviamente eram outros. Ainda no século 19, o surgimento do
"intérprete" e o conseqüente estabelecimento de um
"repertório" iriam mudar tudo isso, com implicações que levariam inclusive a
uma separação - de acordo com alguns critérios apenas - entre música
"popular" e "erudita". O que existe, na verdade, é apenas
música: boa ou ruim.
VOLTEMOS
AINDA MAIS NO TEMPO. DURANTE O RENASCIMENTO (séculos 15 e 16), desenvolveu-se muito um tipo de
escrita, inventada anteriormente, que privilegiava a simultaneidade de
melodias - o que chamamos polifonia (a técnica de composição nesse estilo
chama-se contraponto). Havia uma grande independência entre as vozes, o que
dava margem a diversos ornamentos improvisados pelos cantores, de certo modo
comparáveis às liberdades tomadas hoje por um cantor de jazz. No final desse
período, com a oratória e o canto colocados cada vez mais a serviço do texto -
claramente enfatizando a importância deste -, surgiu a "melodia
acompanhada", com a conseqüente valorização do "solista".
Apareceram novas formas de expressão vocal, como os recitativos e as árias, o
que estabeleceu o cenário perfeito para o nascimento, no início do século 17,
de um gênero que teve um enorme impacto na arte e na técnica do canto: a
ópera.Enquanto no Renascimento o modelo de música era predominantemente vocal,
referência para todos os outros instrumentistas, no período que se seguiu houve
uma verdadeira explosão de música instrumental. É o Barroco (1600-1750), em que
floresceram a ópera e outras formas musicais, como o concerto, por exemplo
(composição instrumental para solista e orquestra). Com o desenvolvimento dessa
música instrumental e a importância cada vez maior do solista, é natural que o
canto passasse a incorporar desenhos melódicos característicos da música
instrumental, o que levou a exigências técnicas também cada vez maiores, devido
ao crescente virtuosismo vocal. Se antes os instrumentos "imitavam" a
voz, agora esta é que "imita" os instrumentos.
NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO 18, com
a primeira revolução industrial e a ascensão da burguesia, surgiram as salas de
concerto e o empresário de música. Paralelamente à ópera, e em conseqüência de
um grande vínculo entre música e literatura, nasceu outra forma musical de
importância inestimável para o canto: o Lied (canção, em alemão), para solista
e piano. O vienense Franz Schubert (1797-1828) é hoje um nome de destaque
entre os inúmeros compositores do período romântico que escreveram canções com
essa forma.
NO SÉCULO 19 houve uma abordagem
mais "científica" do canto, a partir da invenção do laringoscópio. Na
mesma época em que ocorreu uma expansão da orquestra, em salas de concerto mais
amplas, para acomodar um público cada vez maior, a produção musical passou a
exigir vozes com uma grande amplitude, que pudessem despontar em meio a mais de
uma centena de instrumentos. Desenvolveu-se o gosto por uma voz possante, com
grande equilíbrio timbrístico, bastante encorpada e com vibrato constante,
muitas vezes à custa do sacrifício da perfeita articulação da palavra. Este é o
conceito de uma bela voz que muitos têm ainda hoje.
NA
SEGUNDA METADE DO SÉCULO 20, paralelamente à produção de música contemporânea
erudita ou popular, houve um revival de "música histórica",
numa interação com exaustivas pesquisas musicológicas. O avanço tecnológico
fonográfico popularizou essa nova maneira de se interpretar o antigo, numa
busca para se resgatar a sonoridade de músicas de períodos anteriores ao
Romantismo. As implicações técnicas decorrentes das exigências para se cantar
esse repertório vão desde a colocação da voz, até o treinamento em diferentes
sistemas de afinação, o que exige o uso do vibrato muito mais contido.
Se comercialmente surgiu um mercado promissor pelo
qual as gravadoras passaram a se interessar cada vez mais, artisticamente a
volta ao passado contribuiu para nos libertar da estética romântica,
proporcionando a busca por novas linguagens.
por Sérgio Cominatto