terça-feira, 22 de maio de 2012

Breve História do Canto - O Canto Lírico

           
                      Não é tarefa fácil - diria mesmo impossível - escrever uma história do canto tão sucinta como esta. É quase o mesmo que escrever a história da própria música, pois, sendo o único instrumento que expressa uma relação direta entre mente e corpo, o canto está presente em todos os períodos da história do homem. Deste modo, decidi escrever apenas sobre alguns aspectos de absoluta relevância para a compreensão do processo evolutivo da mú­sica cantada.
                    Primeiramente, é muito importante que se tenha consciência do enorme impacto que causaram ao século 20 a invenção e o desenvolvimento dos meios de gravação e de difusão do som: o fonógrafo, o gra­mofone, o microfone, o rádio, o cinema falado, a fita magnética, o vinil, o CD e a Internet - o que perderíamos chamar de "a indústria da repetição". Enquanto hoje há muitos "clones" de cantores (e de outros instrumentistas), no passado devia haver uma diversidade muito maior. Dá o que pensar se meditarmos um pouco sobre a relação que as pessoas te­riam com a música no tempo de Chopin (1810-­1849), por exemplo, quando a mesma música era ouvida apenas uma ou duas vezes durante a vida toda. Sem referências para comparações, os padrões para a apreciação numa primeira audição obviamente eram outros. Ainda no século 19, o surgimento do "intérprete" e o conseqüente estabelecimento de um "repertório" iriam mudar tudo isso, com implicações que levariam inclusive a uma separação - de acordo com alguns critérios apenas - entre música "popular" e "erudita". O que existe, na verdade, é apenas música: boa ou ruim.
                      VOLTEMOS AINDA MAIS NO TEMPO. DU­RANTE O RENASCIMENTO (séculos 15 e 16), desenvolveu-se muito um tipo de escrita, in­ventada anteriormente, que privilegiava a simultaneidade de melodias - o que chama­mos polifonia (a técnica de composição nesse estilo chama-se contraponto). Havia uma grande independência entre as vozes, o que dava margem a diversos ornamentos improvisados pelos cantores, de certo modo comparáveis às liberdades tomadas hoje por um cantor de jazz. No final desse período, com a oratória e o canto colocados cada vez mais a serviço do texto - claramente enfatizando a importância deste -, surgiu a "melodia acompanhada", com a conseqüente valorização do "solista". Apareceram novas formas de expressão vocal, como os recitativos e as árias, o que estabeleceu o cenário perfeito para o nascimento, no início do século 17, de um gênero que teve um enorme impacto na arte e na técnica do canto: a ópera.Enquanto no Renascimento o modelo de música era predominantemente vocal, referência para todos os outros instrumentistas, no período que se seguiu houve uma verdadeira explosão de música instrumental. É o Barroco (1600-1750), em que floresceram a ópera e outras formas musicais, como o concerto, por exemplo (composição instrumental para solista e orquestra). Com o desenvolvimento dessa música instrumental e a importância cada vez maior do solista, é natural que o canto passasse a incorporar desenhos melódicos característicos da música instrumental, o que levou a exigências técnicas também cada vez maiores, devido ao crescente virtuosismo vocal. Se antes os instrumentos "imitavam" a voz, agora esta é que "imita" os instrumentos.
                           NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO 18, com a primeira revolução industrial e a ascensão da burguesia, surgiram as salas de concerto e o empresário de música. Paralelamente à ópera, e em conseqüência de um grande vínculo entre música e literatura, nasceu outra forma musical de importância inestimável para o canto: o Lied (canção, em alemão), para solista e piano. O vienense Franz Schubert (1797-1828) é hoje um no­me de destaque entre os inúmeros compositores do período romântico que escreve­ram canções com essa forma.
                           NO SÉCULO 19 houve uma abordagem mais "científica" do canto, a partir da invenção do laringoscópio. Na mesma época em que ocorreu uma expansão da orquestra, em salas de concerto mais amplas, para acomodar um público cada vez maior, a produção musical passou a exigir vozes com uma grande amplitude, que pudessem despontar em meio a mais de uma centena de instrumentos. Desenvolveu-se o gosto por uma voz possante, com grande equilíbrio timbrístico, bastante encorpada e com vibrato constante, muitas vezes à custa do sacrifício da perfeita articulação da palavra. Este é o conceito de uma bela voz que muitos têm ainda hoje.
                           NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO 20, paralelamente à produção de música contemporânea erudita ou popular, houve um revival de "música histórica", numa interação com exaustivas pesquisas musicológicas. O avanço tecnológico fonográfico popularizou essa nova maneira de se interpretar o antigo, numa busca para se resgatar a sonoridade de músicas de períodos anteriores ao Romantismo. As implicações técnicas decorrentes das exigências para se cantar esse repertório vão desde a colocação da voz, até o treinamento em diferentes sistemas de afinação, o que exige o uso do vibra­to muito mais contido.
Se comercialmente surgiu um mercado promissor pelo qual as gravadoras passaram a se interessar cada vez mais, artisticamente a volta ao passado contribuiu para nos libertar da estética romântica, proporcionando a busca por novas linguagens.
por Sérgio Cominatto


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